segunda-feira, 6 de agosto de 2007



ENTRE DOIS RIOS E MUITAS NOITES


Tenho-a à minha frente. Um pouco gasta pelo tempo, não desbotada, que não vai tão longe assim da técnica essa infân­cia. Mas era ainda quando se tiravam fotografias a preto e bran­co. Em cima de uma rocha, os meus pés e os pés da minha mãe. Calçados de san­dálias, os meus, sapatos altos, os outros -- têm mais a dizer do que outras fotografias de corpo inteiro que es­tavam dentro da caixa. O fotógrafo deixou por ver ainda o meu vestido. Era branco e azul, com pequenos favos. Mas o que mais recordo está nessas sandálias: terem sido compradas para o verão, depois das aulas, uma tirinha branca e fivela pequena. Era inglês o fotógra­fo; amigo do meu pai. Vejo-o com um bigode curtinho e o nome a fascinar-me. Ainda hoje me lembro do seu nome. E de uma caldeirada à fragateira comida lá em casa. Já em férias.

Nasci, como já disse algures, onde nasceu a maior parte dos lisboetas, quero dizer, na Maternidade Alfredo da Costa -- pelo menos, isto era válido para 1956, ano em que nasci. Até aos nove anos, vivi em Sintra; de lá recordo, muito cedo, nas manhãs de escola, o nevoeiro a descer devagarinho e a descobrir o castelo, aos poucos; como num conto de fadas. De lá recordo outras coisas: o meu pai, a bater os braços, debruçado na varanda, e eu, muito pequena, a insistir "voa, voa", e ele a dizer "hoje, não, o vento não ajuda" -- demorei alguns anos a perceber por que é que o meu pai nunca chegara a descolar. De lá recordo pedir à minha mãe que me escrevesse um poema, que eu lhe ditei e que dizia "Outono. / Chegou o Outono. / As folhas que outrora / foram verdes e belas, / hoje são amarelas. / Belas, outrora. / Amarelas, agora." De lá, lembro-me ainda de amizades tão grandes, ou que a minha memória fez grandes depois de vir para o norte do país, que me faziam sonhar com elas. Essas amizades marcaram-me, fizeram-me chorar horas compridas todas as noites, desejando estar lá. E vê-las, vivas.

A partir de certa falta de sono, as coisas surgem com mais nitidez. Algumas, têm até o privilégio de pairar por detrás de lentes. Côncavas ou convexas, e as coisas diminuindo ou aumen­tando de tamanho, mas sempre nítidas. Queria ser abrangente ao falar delas, dessas pequenas coisas. Não só desses dois rios que me formaram, mas de outros inerentes, embora de rios nem o dis­farce tenham.

Vim, pois, aos nove anos, para o norte do país. Lembro-me dos paralepípedos de que eram então feitas as estradas do Porto -- ou as que a elas conduziam. De chegar, numa noite de inverno, à que seria a minha casa durante os vinte anos seguintes. Entrei na escola a meio do período, em Janeiro, e, para além das saudades do que ficara à beira do outro rio, foi difícil a adaptação. Lembro-me de se rirem da minha pronúncia, de me atirarem ao ar, entre gritos de "a lisboeta". Apanhada sempre a tempo (como disse também algures), recordo que acabei por igualmente aqui fazer amizades, algumas que me acompanharam para o momento seguinte, a época do colégio de freiras, onde aprendi a falar espanhol, a gostar de português e a odiar matemática.

Ainda a preto e branco, rectângulo de lados recortados, que assim se usava, é uma outra fotografia, embora a mesma caixa. Estou de pé, braço apoiado em corrimão de escada de ferro forjado. Estamos todas de pé, distribuídas pela escada, bata branca e, nalguns casos, a adivinhar-se por baixo, o uniforme aos quadradinhos. Só as posições diferem: a Emília, ao meu lado, cruzou mãos sobre o ferro e há outra, sem nome, descolada do supor­te branco. Em contraste desigual, sal­picando a onda branca, os hábitos negros das freiras. Era um dia de sol, eu usava o cabelo apa­nhado e continuava magra como no outro espaço do outro rio a Sul; as pérolas de água, pequenas carpas debatendo-se no tan­que.

Lia todos os dias, na missa do colégio, as Epístolas. Lia-as numa voz fininha, que as freiras achavam ser bonita. Conheci a Bíblia praticamente toda. Dela me ficaram sobretudo passos, versículos que de noite cintilavam, as noites em que usava uma lanterna amarela, comprada com dinheiro do mealheiro, para ler debaixo dos lençóis. E lia o que me aparecia -- livros de aventuras, as vidas dos santos, e também "O Crime do Padre Amaro", tirado de casa da minha avó, às escondidas, e também as irmãs Brontë -- tudo um pouco caótico.

Influências, não as conheço, não sei. Só, e sobretudo, a minha tia, poeta, Manuela Amaral, que me recitava em voz alta os seus poemas, e a quem eu lia os meus poemas. Foi ela, definitivamente, a minha maior influência até depois de acabar a Faculdade, de ter passado dos dois últimos anos do liceu, em Matosinhos, onde aprendi a gostar de Filosofia e a detestar Latim ("quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?").

Pela Faculdade de Letras me fiquei, como professora de Literatura Inglesa, tendo feito um doutoramento em poesia norte-americana. Emily Dickinson, a que preencheu esse dever académico, é também uma das minhas preferências, essa poesia que leio por puro prazer. Talvez dela também influências. Como de Adrienne Rich, de Denise Levertov, ou, a certa altura, de Sylvia Plath, aquela que, não muito antes do suicídio, escreveria, num poema dramático, "serei uma heroína do periférico". Como de William Blake, o visionário. Como de um outro William, o que um dia falou dessa história cheia de som e de fúria, que é a vida. Dos portugueses não sei influências, talvez porque me são próximos demais.

Ensino, pois, Literatura Inglesa, embora tenha escolhido Literatura Norte-Americana para me doutorar -- é-me muito difícil manter lealdades cegas, no que diz respeito à literatura. Talvez por isso a minha paixão pela Literatura Comparada, e por ter passado mais de dois anos nos Estados Unidos, com a minha filha, a Rita, numa universidade linda, que é a de Brown, numa casa lindíssima de uma grande amiga, a Patricia. Essa casa era rodeada de pinheiros, dando para um rio, que me recordava os meus dois outros rios que, de diferentes formas, me viram nascer.

Partiram, as gaivotas, para um sítio do Sul, já não o meu, como nunca chegou a ser totalmente meu este sítio ao Norte do mesmo rio, mesmo que com outro rio a banhá-lo. Como andorinhas, partiram rumo ao Sul, a espaços quentes onde procriar, deixar marcas de ventos -- é possível. Entre as duas paisagens, entre os dois rios mais físicos que tudo, elas partiram e eu fiquei.

Vivo ainda no norte do país (em Leça da Palmeira, uma praia perto do Porto, onde as ondas de inverno são altas e muito brancas), que aprendi a amar. O espaço deste segundo rio tem margens tão belas como as do primeiro -- e, ao mesmo tempo, para mim, de acesso tão difícil, mas feito de fascínio, como as outras.

Sem pertencer jamais a uma paisagem própria. Se me sento a jusante, as outras margens soam-me mais caras, de maior arvoredo do que aquelas que piso: e o mesmo do avesso, se troco de lugar, de perspectiva: é sempre mais bela a outra margem, aquela onde não estou. Entre muitas, poucas mais have­rá a recordar.

Nos últimos sete anos, publiquei vários livros. Às vezes, acho que os seus títulos são, como os poemas que lá estão dentro, heranças de ter vivido no meio -- e o resultado de pequenos brilhos que só aí se fixam: entre dois rios e muitas noites.


ana luísa amaral, 1998